quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Billie Holiday, a Lady Day

   Quando morreu, em 1959, era raro um disco seu nas lojas, assim como as rádios dos EUA quase não tocavam mais suas gravações. A situação mudou ironicamente após seu falecimento. Além de voltar as lojas e rádios, passou a ser cultuada com grande intensidade. Acontecimento que a cantora não desfrutou em vida.
   Em depoimento  no livro Hear Me Talkin' to Ya, Billie Holiday tenta explicar a origem do seu estilo: "Tento improvisar como Leste Young, como Louis Armstrong ou algum outro músico que eu admiro. O que sai é o que eu sinto. Odeio cantar reto. Tenho que adaptar a canção ao meu jeito. Isso é tudo que eu sei."
   A excepcional cantora Carmen McRae se tornou uma das mais talentosas seguidoras de Billie, e em depoimento confessou a  Art Taylor que teve receio de se lançar na carreira musical por se comparar em demasia com ela.
Carmen McRae
   "Ela foi uma das mulheres mais impressionantes que encontrei em minha vida. Me deixou apavorada pela maneira como cantava. Parecia tão perfeita que eu sentia que qualquer coisa depois dela seria anticlimática".
   Além de sua maneira bastante pessoal de frasear e improvisar, ou do repertório recheado de canções cuja temática se reportava à sua conturbada vida pessoal, a Lady Day (apelido pelo qual era conhecida nos meios do jazz) deixou uma lição essencial para seus inúmeros discípulos e fãs: só queria ser ela mesma.
   

Criança Rejeitada


   Sarah Harris ou Sadie (mãe de Billie), também amargou a condição de filha ilegítima. Seu pai, Charles Fagan, não a reconheceu ao nascer. Sadie teve que deixar cedo a escola para ajudar a mãe que era empregada doméstica. Sem perspectivas, Sadie trabalhava como arrumadeira em Baltimore e lá engravidou com 18 anos. Pouco depois viajou para Filadélfia, onde deu à luz a Eleanora Harris.
Billie com 2 anos - 1917
   Sadie e o suposto pai da garota, Frank DeVeazy (nome que consta na certidão de nascimento) jamais se casaram, nem mesmo moraram juntos.
   Dificilmente saberemos se Frank foi o pai legítimo de Eleanora. O fato é que Sarah disse sempre a Eleanora que seu pai era um guitarrista de Baltimore, Clarence Holiday.
   A garota nunca duvidou da identidade paterna, tanto que, por volta dos 15 anos de idade, quando resolver adotar um nome artístico, juntou o nome da conhecida atriz de cinema Billie Dove com o sobrenome do suposto pai.
   Sarah Harris foi rejeitada por Clarence e logo após o parto, recorreu a Eva (meia-irmã) que acabara de casar, para que cuidasse da menina. Mas quem realmente assumiu a criação de Eleanora durante os anos iniciais, foi Martha Miller, sogra de Eva, mulher que a garota chamava de vó, mesmo não tendo nenhum laço sanguíneo.
   Por volta dos cinco anos de idade, entre 1921 e 1923, Eleanora voltou a morar com a mãe e tios, tendo um raro período de convívio familiar e relativa segurança. A mãe Sadie casou-se com o motorista Philip Gough. Mas a alegria durou pouco. O casamento se desfez, a mãe devolveu a filha para a avó postiça Martha Miller, e foi para o Norte.
   Eleanora, sentindo-se rejeitada tornou-se uma criança problema. Em 1925, um juiz decidiu pela internação da garota numa instituição católica para meninas negras delinquentes. Segundo um biógrafo, naquele instituto foi onde ela teve suas primeiras experiências homossexuais.
Sarah Harris (Sadie) e Eleanora (Billie Holiday)
   Sadie juntou algumas economias e nove meses depois abriu um modesto restaurante em Baltimore, conseguindo retomar a guarda da filha. Contente por estar perto da mãe, a menina nem se incomodava em ajudar na cozinha e na limpeza até altas horas da noite. Em vez de brincar, como qualquer garota de 10 anos, quando conseguia escapar do restaurante, sua diversão era entrar nas lojas populares para roubar meias de seda.
   Sadie, como sempre mais preocupada com seus namorados do que com a filha, se assustou na véspera do Natal de 1926. Voltando de uma noitada, ao entrar em casa viu a garota sendo estuprada por um vizinho. O sujeito foi detido, julgado e condenado. Porém, Sadie mais uma vez demonstrou incapacidade de cuidar da filha, e Eleanora foi internada novamente no instituto católico.
   Quando a garota saiu, por volta dos 12 anos de idade, já percebera que não podia contar com a mãe.


Vida Difícil e o Nascimento da Cantora


   De volta ao cotidiano no restaurante da mãe, a precoce Eleanora encontrou uma maneira de ganhar alguns trocados a mais. A dona de um bordel oferecia-lhe gorjetas para levar pequenos recados ou até fazer pequenos serviços no estabelecimento, como lavar bacias e trocar toalhas dos banheiros.
Louis Armstrong
   A garota logo descobriu que o bordel tinha uma atração muito especial: um quarto, no piso inferior, com uma vitrola que lhe permitia ouvir quantas vezes quisesse, os discos de jazz e blues disponíveis, os quais mudaram os rumos da sua vida.
Bessie Smith
   Provavelmente no segundo semestre de 1928, ali no bordel, Eleanora escutou a clássica gravação de West End Blues, obra prima de Louis Armstrong e sua banda Hot Five. Ouvindo nos meses seguintes vários outros discos disponíveis de Louis.
   Três décadas mais tarde, Eleanora relatou numa entrevista a revista Metronome: "eu copiei meu estilo de Louis Armstrong". Naquela vitrola, a ainda adolescente entrou em contato com sua outra importante influência, a dramática e habilidosa "imperatriz do blues", Bessie Smith.
   Em 1928, Sadie novamente abandonou Eleanora aos cuidados da avó postiça, que nessa altura já não conseguia controlá-la. A menina começou a frequentar com assiduidade o bordel, conhecendo melhor os personagens daquele pequeno universo. Foi o empurrão que faltava para começar a cantar, ainda acompanhado pelos discos, e infelizmente aderir eventualmente à prostituição.
Billie - 1931
   Tempos depois, a mãe Sadie mandou dinheiro para que a filha fosse morar com ela em um bordel no Harlem. Alguns imprevistos surgiram, entre os quais, Eleanora ainda com 14 anos, foi detida com outras duas dezenas de prostitutas numa batida policial, cumprindo pena de três meses e meio num reformatório para adultos. 
   ao sair do reformatório, sua mãe queria recomeçar a vida voltando a trabalhar como doméstica, mas a menina já tinha decidido: nunca mais voltaria a esfregar o chão ou cuidar da casa de gente branca novamente.
   Eleanora começou a se apresentar em pequenos cabarés e boates do Brooklyn e do Queens. Estava pronta para assumir seu destino: tornar-se Billie Holiday, a Lady Day.


Sucesso e Discriminação


Louis e Billie
   O impacto dos originais vocais de Billie Holiday, combinado com seu carisma e beleza física nos palcos, foi fulminante. Aos 23 anos, já tinha gravado ou se apresentado ao lado de gigantes como: Duke Ellington, Count Basie, Lester Young, Fletcher Henderson, Jimmie Lunceford, Teddy Wilson, Benny Carter, Artie Shaw, entre outros.
   Lady Day tinha um estilo único. Interpretava as canções com riquezas de entonações e recursos dramáticos de atriz. Atrasava as palavras como se estivesse atrás do ritmo básico.
   Sua carreira decolou em 1933, quando foi ouvida por acaso pelo produtor John Hammond num pequeno clube nova iorquino. "O jeito que ela cantava em torno da melodia, seu incomum senso harmônico e sua compreensão do conteúdo das letras eram quase inacreditáveis para uma garota de 17 anos", relembrou John anos mais tarde.
Billie e Duke Ellington
   Em novembro de 1933, Holiday entrou no estúdio pela primeira vez, para gravar com a orquestra do clarinetista Benny Goodman e do baterista Gene Krupa.
   Em 1934, acompanhada pela orquestra de Duke Ellington, gravou Blues (Saddest Tale), trilha do curta-metragem Symphony en Black. Foi sua primeira aparição no cinema, como atriz e cantora.
   Em 1935, veio o sucesso através da brilhante parceria de sete anos com o pianista Teddy Wilson.
   O sucesso e os elogios de críticos não livraram Billie Holiday de enfrentar várias situações de discriminação durante a carreira. Em 1938, como vocalista da big band de Artie Shaw, ela era barrada com frequencia nos restaurantes e hotéis em que a banda se hospedava. Segundo Billie, até Shaw, que comprou a briga de ter uma vocalista negra numa época em que isso era tabu, acabou retrocedendo quando a pressão aumentou.
   Artie Shaw contratou um vocalista branca, e Lady Day cantava apenas dois números por noite. Quando não estava cantando, tinha que ficar nos bastidores.
Billie - 1942
   Preconceitos também marcaram o retorno de Billie ao cinema em 1947. O projeto do filme New Orleans tinha uma ideia promissora: celebrar no cinema a música da cidade natal de Louis Armstrong, que também fez parte do elenco ao lado de outros jazzistas notáveis. Porém, a máquina de clichês e preconceitos de Hollywood acabou massacrando qualquer boa intenção inicial.
   O que era para ser a obra definitiva sobre o jazz no cinema, revelou-se uma grande decepção. Billie Holiday teve que se contentar com o papel de uma criada. O que mais poderia esperar de uma história encenada em Nova Orleans de 1917, cujo enredo girava em torno das peripécias amorosas de uma cantora branca de ópera?


Duas Fases


Teddy Wilson e billie
Billie - 1947
   Alguns críticos americanos costumam dividir a obra musical de Billie Holiday em duas fases.
    A primeira, marcada pela longa parceria com o pianista Teddy Wilson, e pelas gravações com as orquestras de Count Basie e Duke Ellington.
   Entre as gravações mais cultuadas constam I'll Never be the Same e Mean to Me, onde o sax de Lester Young se faz presente, parceiro e amigo íntimo da cantora.
Billie - 1956
   A segunda fase da carreira de Lady Day, inicia em 1942. Nessa época a cantora estava viciada em heroína, fator que deixara marcas irreversíveis em sua voz e no tom das interpretações. Diga-se de passagem que Billie já era consumidora assídua de maconha e álcool desde a adolescência.
Billie - 1959
    Num de seus piores momentos pessoais, em 1947, foi detida e cumpriu pena de nove meses de prisão por posse de heroína. De quebra, perdeu a licença para se apresentar nos clubes de Nova York.
   Hoje as gravações da década de 50, ao lado de Oscar Peterson, Ray Brown e Barney Kessell, figuram entre as obras mais preciosas do legado de Billie, cuja carreira foi abreviada de maneira dramática por sua incapacidade de se libertar do vício.
Funeral, 18 de julho de 1959
   Para alguém que emocionou milhões de fãs com sua voz, torna-se difícil imaginar que em seu leito de morte, num hospital, recebeu ordem de prisão. Uma suspeita enfermeira denunciou à polícia que tinha encontrado um estojo com heroína ao lado da cama da paciente, que dias antes chegara a entrar em estado de coma.
   Felizmente, não foi essa a imagem que ficou. Dias após, a voz da Lady Day (apelido criado por seu amigo Lester Young), voltou a ser ouvida nas rádios, tvs, lojas e por uma legião de fãs que não parou mais de crescer.




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