quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Música na Igreja

Entre os Santos e os Andores


Teto da nave central da Igreja São Francisco de Assis,
 em Ouro Preto (MG). Obra de Manuel da Costa Ataíde
   No seu dia a dia nada se nota, mas a igreja é uma espécie de máquina do tempo cultural. O mundo passa e ela persiste.
   A igreja pode pensar séculos adiante e se dar ao luxo de esperar, pois seu tempo é a eternidade.
   Não se pode dissociar a história da música da história da igreja. Que seria das bandas, dos corais, das organizações que morrem com seus entusiasmados líderes, não fosse a continuidade assegurada pela igreja, o edifício físico capaz de ser o repositório dos documentos e das partituras, como também a  igreja em seu espírito, assegurando a necessidade da presença da música.
Ilustrações da pintura no teto
da sacristia do Convento de
Santo Antonio de Igaraçu (PE).
   Além de preservar a música, a igreja não deixou também de registrar sua influência até mesmo na decoração do interior dos templos. Em sua monumental pintura para o forro da capela-mor de São Francisco de Assis, em Ouro Preto (MG), Manuel da costa Ataíde, talvez o maior de nossos pintores coloniais, seguramente seguia padrões europeus do século XVII ao incluir anjos-músicos e cantores. Mas Ataíde, que ajudou a nacionalizar a elegância e a leveza do rococó, tinha também diante de si, ao decorar com harpas e liras os tetos de mais de uma dúzia de igrejas mineiras, o rico universo musical da Colônia de então, ao qual a população tinha acesso constante, graças às festas cívicas e rituais promovidos pela igreja.

   Em 1776, nasceu em São João del-Rei a Lira São Joanense. Como quase toda irmandade musical religiosa da época, era formada por homens negros.
Página de rosto de manuscrito pertencente à Orquestra
Lira São-Joanense,São João del-Rei (MG)
   No dizer de Tancredo Neves (em entrevista), "a arte musical era entregue aos mulatos. Por um lado, a música para eles era a expressão, o lamento pela distante terra perdida. Por outro lado, pela música o mulato conseguia firmar-se em uma posição social melhor". Ainda segundo Tancredo, "todos os grandes compositores de São João del-Rei foram mulatos".
   Isso valia para toda Minas Gerais. José Joaquim Lobo de Mesquita (1746-1805), mestre-de-capela da Matriz de Nossa Senhora da Conceição da Vila do Príncipe, hoje Serro, que teve influência decisiva na formação musical do final do século XVIII, pertencia ao Terço de Infantaria dos Pardos e à Confraria de Nossa Senhora das Mercês dos Homens Crioulos.
   A Lira São-Joanense toca nas igrejas e nas festas religiosas. Um de seus grande dias é a procissão do Trânsito de Nossa Senhora, em louvor de Nossa Senhora da Boa Morte, também chamada de Semana Santa dos Mulatos, promovida pela Confraria dos Negros e Mulatos da cidade.

1. Livros de Cânticos em notação gregoriana.
Museu da Música, Mariana (MG);
2. Estante de couro com livro de cânticos
na Igreja do Carmo, Recife (PE);
3. Detalhe do livro de cânticos sobre a estante.
   Irmandades como as de São João del-Rei bem ilustram a maneira como elas participaram da formação musical do Brasil, pelo ensino dos fundamentos técnicos da música, pelo ensaio e pela crítica constante e até pela geração da própria necessidade de mais músicos, de artesãos capazes de construir instrumentos para si próprios e para os demais membros.
Páginas de rosto de
manuscritos antigos.
Lobo de Mesquita.
   Uma das mais famosas nesse sentido, conhecida como grande celeiro de artistas pernambucanos, é a Irmandade de santa Cecília dos Músicos. Fundada por Luís Álvares Pinto, em 1789, na Igreja do Livramento, era constituída por músicos ou amantes da música. Em seus registros, propunha que "toda pessoa que houver de exercer a profissão de músico na Praça do Recife será primeiramente obrigada a entrar para a Irmandade".
Reprodução de gravuras que
representam trechos de uma
ladainha para Nossa Senhora.
Partes de uma coleção
conservada no Convento do
Desterro, em Salvador (BA).

   É evidente que a música aprendida em função da atividade religiosa não poderia ficar apenas presa à igreja. Teria que ir também para a rua e servir de meio à expressão da criatividade popular. A expressão "profana", quando usada nesse contexto, não significa necessariamente algo de pecaminoso. Apenas quer dizer "música não religiosa".

   Várias formas de música popular se originam dos conhecimentos adquiridos nos ensaios de coro nas igrejas e nos cantos das procissões. Quando repetidos em casa, aprimoram e inspiram o gosto pela música: ladainhas e novenas são cantadas enquanto se borda, se cozinha ou se lava a roupa, lado a lado com modinhas e canções de amor.
   Para quem se diverte numa festa de rua não há diferença entre a música de inspiração religiosa e a de sabor tipicamente popular.


Fonte                       
Modinha, Raízes da Música do Povo (José Rolim Valença);