domingo, 29 de novembro de 2020

A Vila Emudeceu

  Um carro pomposo estava encostado no pé do morro e o dono, todo afobado, procurava Angenor de Oliveira. Era o cantor Mario Reis procurando o tal do compositor para comprar-lhe um samba. Pagou na hora trezentos mil réis, moeda vigente da época. O comprador acabou repassando o samba para Francisco Alves, outro cantor bastante popular na época.

  A propagação do negócio, aumentou muito a fama do compositor Cartola entre os sambistas e o "asfalto". Seu parceiro Aluísio Dias, que batalhava nos pontos dos cantores para "colocar" este ou aquele samba, não conseguia convencer o amigo para descer até a cidade e mostrar seu trabalho. Cartola, que em qualquer outra situação mantinha a altivez e a dignidade, dizia que não iria implorar nada a ninguém. Quem quisesse samba seu que tratasse de sujar a barra da calça na lama das ladeiras de Mangueira e fosse buscá-lo no morro. Ele não iria à cidade.

  Por fim, a cidade foi a ele. E de maneira mais gloriosa. Com a popularização do chamado samba-de-morro, Noel Rosa percebeu de imediato a qualidade musical dos compositores daquela área e interessou-se pela técnica instintiva de criação, pela engenhosidade nata, pelo talento natural dos brilhantes criadores de origem humilde. Acabou por aproximar-se deles e o que aconteceu foi uma proveitosa troca de experiências: o poeta culto da cidade ensinando o que sabia de seu lado da moeda e aprendendo a outra face com os compositores de inspiração popular.

  Atravessando noites nas tendinhas do morro da Mangueira, era natural que Noel se aproximasse de Cartola. Em pouco tempo a amizade consolidou-se e a parceria transbordou, líquida e sonora. Os porres que a dupla tomava eram monumentais, e os sambas que faziam, lindos.

  Antes de Cartola, o samba-de-morro tinha somente a primeira parte, a segunda era sempre improvisada. Mesmo como autodidata, estudando o braço do instrumento, Cartola desenvolveu a segunda parte do samba trocando experiências com Noel, compondo com ele, firmando a amizade, muitas vezes interferindo um na obra do outro, sem que isso aparecesse na parceria.

  Uma história curiosa da dupla , e que Cartola sempre reproduzia vitoriosamente, foi a de quando estavam completamente sem dinheiro num bar do Maracanã, quando apareceu o cantor Francisco Alves. Apesar da fama de avarento, tomaram coragem e foram pedir um dinheiro ao conhecido comprador de sambas. Depois de muito relutar, Francisco Alves fez o desafio. Daria cem mil réis (valor alto na época) a cada um, mas queria um samba composto na hora, um de Noel, outro de Cartola. "Tinha um chafariz na frete do botequim. Fomos para lá e em uma hora os dois sambas estavam prontos".

 Por volta de 1932, o compositor da Mangueira tinha pronta a primeira parte de um samba. Qual foi o mal que eu te fiz. Noel gostou da ideia e fez a segunda parte, mas quando Francisco Alves comprou a composição, na hora de acertarem as contas, Noel não quis receber nada, dizendo que a colaboração dele fora mínima. A amizade cresceu muito e, quando Noel morreu, aos 26 anos, em maio de 1937, Cartola ficou abaladíssimo. Para o amigo, compôs um réquiem em forma de samba, chamado A Vila Emudeceu.


a Vila emudeceu
dolorosamente chora o que perdeu
ninguém é imortal
morrer é natural

Oh Deus, perdoa
se é que estou pecando
que mal lhe fez a Vila,
que estás torturando?

era o rei da filosofia,
fez da vida o que queria
usou da imaginação
os seus versos ritmados
por ele mesmo cantados
tinham bela entoação

na Vila onde, ele morava
todos os seres cantavam as glórias dos seu poeta
hoje a Vila é triste muda, ao bater Ave-Maria
quando aurora desperta


fonte                                                                                                                       :
Cartola - Semente de amor sei que sou, desde nascença. (Arley Pereira);
Pinterest;