sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Vida de Virtuose Não é fácil

   Será que o virtuose é feliz? 

   No palco, diante das aclamações, certamente é. E no dia a dia, será?

   Uma categoria especial entre os interpretes são os virtuoses ou virtuosos. O dicionário Houaiss define que o virtuose é um artista que atinge altíssimo grau de conhecimento e domínio técnico na execução de sua arte.
    O futuro virtuose inicia a carreira como qualquer criança que resolve estudar música, influenciada ou não pelos pais. Só que desde o começo ele se destaca pela facilidade motora e por sinais de talento musical. Mas nem sempre os pais ficam felizes quando, diante de inúmeras carreiras, o filho decide ser músico pra valer.
   O jovem começa então a se dedicar ao instrumento escolhido e diante dos primeiros sucessos se empenha cada vez mais no estudo das escalas, métodos e peças musicais.
   Enquanto outras crianças jogam bola ou se penduram no computador, o futuro virtuose fica grudado no instrumento. Frequenta cursos regulares de música, cursos de férias, palestras, workshops, festivais, ingressa na universidade, faz mestrado no país ou exterior e assim, quase sem perceber, passa vinte anos de sua vida dedicado ao instrumento. Está pronto para lutar e conquistar um lugar ao sol. Entre milhares de crianças que começaram a estudar um instrumento, ele chega à "fórmula 1" das competições musicais.
   Tecnicamente e musicalmente preparado, com talento apurado ao máximo e dominando o repertório geralmente de cor, o virtuose entra na concorridíssima arena em busca do sucesso com o público.
   Os primeiros prêmios conquistados nos concursos nacionais e internacionais são importantes para dar impulso à carreira, assim como o é um bom agente que, em troca geralmente de vinte por cento do cachê, consegue contratos para recitais ou apresentações como solista de orquestra. Com nome e público conquistados (o que demora anos!), ele entra na roda-viva da carreira internacional. 
   Estuda oito ou mais horas por dia, viaja por vários países numa sucessão de aeroportos, hotéis, salas de ensaios e de concertos, e toca o mesmo concerto inúmeras vezes, com o entusiasmo da primeira vez.
   E assim, dia após dia, em pesados treinos, viagens e concertos, o virtuose geralmente só tem a visão da cidade por onde passa pela janela do táxi ou do hotel. Não sobra tempo para turismo. Vida de virtuose é glamorosa: aplausos, flores, fotos, entrevistas, dedicatórias nos discos, mas é feita também de privações comparáveis às dos monges de ordem rigorosa.
   Uma pianista que se levanta para agradecer os aplausos por uma maravilhosa interpretação pode passar a maior parte da vida sozinha, trabalhando arduamente sua técnica e interpretação durante incalculáveis horas sentada no desconfortável banco do piano, e nos braços, pela posição incômoda mas necessária para alcançar todas as teclas. Talvez a pior e mais antinatural posição seja a dos violinistas, que tocam com a mão esquerda quase deslocada; ou a dos flautistas, que usam as duas mãos permanentemente levantadas. Cinco minutos tudo bem, mas ficar nessa posição horas seguidas é extenuante.
   O drama do virtuose é que, ao contrário de outros profissionais, ele precisa treinar diariamente porque a memória muscular é frágil e necessita ser alimentada sempre. O famoso pianista Ignacy Paderewsky dizia que o segredo do sucesso era o treino por várias horas todos os dias. Ele explicava aos alunos: "Quando eu paro de estudar um dia, eu sinto. Quando paro dois dias, os críticos percebem. Quando paro três dias, quem percebe é o público".
Pablo Casals
   O virtuose e maestro espanhol Pablo Casals, indagado por um jornalista porque no auge de seus oitenta anos ainda estudava todos os dias, respondeu com modéstia: "Eu tenho a impressão que estou começando a melhorar". E Casals não era um músico qualquer. O crítico W. Schmid escreveu; "Ouvir Casals tocar violoncelo significa limpar a alma da rotina de dias comuns e transformar o coração numa igreja". Para conseguir essa fama, o artista, conforme Casals, "tem que sacrificar a vida inteira, renunciar a muitas coisas, contentar-se com o trabalho e alegrar-se com o progresso". 
   Mas não são apenas os músicos eruditos que precisam estudar diariamente. O saxofonista John Coltrane tem opinião parecida com a de Paderewsky: "Abandone o seu instrumento por uma semana que ele o abandona por um mês".
   William Styron, no livro Darkness Visible, demonstra que os artistas mais propensos a um desequilíbrio psíquico são os músicos. A apresentação a que o público assiste é uma série de sons que seguem e desaparecem imediatamente, ao contrário de pintores e escritores, cuja obra permanece para sempre.
John Coltrane
O virtuose precisa repetir sempre o processo de criação cada vez que se apresenta. O pintor pode corrigir uma possível falha no quadro, o escritor pode trocar palavras do romance. O virtuose não pode falhar. Um erro na interpretação é inapagável, não tem como voltar atrás.



Processo de Preparação


    O processo de preparação de composição musical a ser apresentada num concerto é longo. 
   Após escolher a obra, começa a parte mecânica, que é vencer os problemas técnicos: dedilhados, notas certas, ligaduras, acentos, dinâmica, afinação e outros garantem a reprodução exata da escrita. 
   Em seguida, começa o estudo da forma, do equilíbrio, dos temas e dos contrastes, das variações rítmicas, características estéticas e estilísticas. 
   Dominados esses itens, o virtuose começa a procurar sua concepção da obra, que vai diferenciar seu estilo ou aproximá-lo da interpretação de outros artistas. 
   Robert Schumann achava que "a técnica tem valor somente quando está a serviço das metas mais sublimes, de forma a alcançar, com perfeição, a execução da verdadeira música".
   A verdadeira função do virtuose é servir à música, usar as qualidades musicais para encontrar a melhor interpretação e assim realizar com perfeição uma composição musical. Um subproduto desse esforço é a fama. Para alcançá-la, o caminho é longo e árduo. Mas, para perdê-la, basta alguma indisposição e o público esquece as inúmeras apresentações brilhantes. Só se lembra daquela nota aguda que falhou naquele dia. Uma doença das cordas vocais, um reumatismo, um dedo machucado acabam com a carreira e a fama do virtuose, e ele volta a ser um mortal comum.
Jacqueline du Pré
   Uma violoncelista brilhante, a britânica Jacqueline du Pré (1945-1987), tão talentosa que, pelas interpretações incríveis, ganhou um Stradivarius de dois milhões de dólares de um anônimo mecenas. Jacqueline foi tomada pela esclerose múltipla, que começou a limitar seus movimentos de forma progressiva até paralisá-los totalmente, levando-a ao desespero e à morte prematura aos quarenta e dois anos.
   A maioria das pessoas que escolhe a música como profissão sonha conquistar a glória dos grandes virtuoses, como muitos soldados sonham chegar ao posto de general. Poucas conseguem. 
   Para os vencedores, o preço do sucesso é elevado. Renunciam a muitos dos prazeres de um mortal comum, enfrentam carreira insegura, competição feroz, impossibilidade de se aprofundar em outras áreas porque o instrumento lhes toma todo o tempo disponível. Sofrem com as frequentes viagens que desregulam totalmente o convívio familiar de um casal "normal".
   Não será o custo da fama e do sucesso alto demais? 




Fonte                   
Música é coisa séria...mas nem sempre. (Bohumil Med).