segunda-feira, 25 de junho de 2018

Grande Dama do Samba

     O Mês de abril de 2018 ficou marcado pelo fim do quase centenário da cantora e compositora Ivone Lara, que posteriormente, em forma de respeito, ganhou o "Dona" antes do primeiro nome.
   Nascida e criada em berço musical, marcando época na ala de compositores da Escola de Samba Império Serrano, optou por seguir sua vida e criar sua família exercendo as funções de Assistente Social e enfermeira até sua aposentadoria, quando se dedicou exclusivamente à carreira artística, cujo legado já está perpetuado na história musical brasileira.
   Enfrentando o preconceito por ser mulher, negra, de origem humilde e sambista, Dona Ivone está entre as principais compositoras do samba nacional, tendo migrado também para a MPB, com composições consagradas nas vozes de diversos artistas, entre elas Sonho Meu, cantada por Maria Bethânia.
   Rompendo paradigmas em um território tradicionalmente masculino, essa mulher compositora, negra e pobre galgou os caminhos tortuosos da vida, dividindo-se entre a carreira profissional e a família até se embrenhar no mundo artístico, deixando para sempre seu nome gravado na história do samba e da MPB.
   

Nasce Uma Estrela


   Em meio às transformações urbanas e sociais que o Rio de Janeiro sofria, nascia aos 13 dias de abril de 1921, no bairro de Botafogo, Yvonne Lara da Costa, filha de João da Silva Lara, violonista e componente do "Bloco dos Africanos", e Emerentina Bento da Silva, cantora do rancho "Flor de Abacate".
   Essa história começa bem antes de uma câmera fotográfica focar pela primeira vez nossa personagem, que diz não ter fotos de sua infância, mas falava sobre o período, com o tom de voz sempre sereno e conformado, da precoce perda do pai de quem não tinha lembranças, já que ele, devido a um acidente, faleceu aos 27 anos, quando ela ainda tinha somente três anos; e de sua mãe, vítima de uma pneumonia, aos 33, quando Ivone ainda não atingira a adolescência.
Ivone com colegas do Colégio Orsina
   Antes mesmo da perda materna, a menina já pertencia aos quadros do Colégio Interno Orsina da Fonseca, onde permaneceu até os 17 anos e de lá conta com saudades do tempo em que saía para visitar a família e logo queria voltar ao internato, pois gostava do dia a dia do lugar e da organização de seu tempo ali, onde seu talento musical foi reconhecido pela primeira vez, contando com a admiração especial de duas de suas professoras, Lucilia Villa-Lobos, primeira esposa do célebre maestro Heitor, e Zaíra Oliveira, então esposa do sambista Donga. Foram, justamente, esses contatos que levariam a talentosa menina a galgar o caminho para o estrelato musical, participando do "Orfeão dos Apinacás", da Rádio Tupi, cujo regente era o próprio Villa-Lobos, que juntava todos os coros e realizava grandes eventos por ocasião de festas cívicas. 
   No orfanato, a menina Ivone, ainda aos 12 anos de idade, começou a dar sinais da compositora que viria a ser, quando em sua primeira composição criou o estribilho do famoso partido alto "Tiê-Tiê", em referência ao nome de um pássaro que ela sempre gostou.
   Após sair do Internato, Ivone foi morar com o tio, Dionísio Bento da Silva, que não oferecia em sua casa a mesma serenidade e delimitação de espaço do Colégio Orsina, mas abriu as portas para o desenvolvimento de seu talento, ao conviver com bambas da música negra que surgia, já que a casa era frequentada por amigos do tio, como Jacob do Bandolim, Pixinguinha, entre outros nomes conhecidos no mundo do samba. Além dos elogios das professoras e dos contatos com sambistas de destaque, o samba estava no sangue de Ivone, pois seu tio Dionísio era pai de Hélio dos Santos, o "Tio Hélio"; e de Antônio dos Santos, o Mestre Fuleiro, primos da menina e parceiros por toda a vida.
Momento no Hospital Engenho de Dentro
   Antes de assumir a música definitivamente, Ivone se formou na Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, ingressando, depois, no Ministério da Saúde, onde prestou serviços por oito anos na Colônia Juliano Moreira, dedicada a doentes mentais. Especializada em Terapia Ocupacional, dedicou-se a trabalhos em hospitais psiquiátricos, até a sua aposentadoria, em 1977, quando resolveu dedicar-se à carreira artística, deixada até ali, em segundo plano.
   Ao entrar de cabeça exclusivamente na carreira artística, Dona Ivone manteve a postura e o respeito diante de seu público, tendo muito cuidado com a aparência, lições aprendidas com as cantoras do rádio, que tanto admirava. Sob os refletores, dançava jongo e cantava seus sambas.
   Entre os intérpretes que gravaram suas composições destacam-se Clara Nunes, Roberto Ribeiro, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paula Toller, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Mariene de Castro, Roberta Sá e Dorina, entre outros.

Musicalidade na Veia


Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, Cartola e Ivone
   Carioca, mulher, negra, sambista de origem humilde. Essas características poderiam ser utilizadas para diversas personalidades do metiê do samba, como Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra, Lecy Brandão, entre outras de menor poder midiático.
Bethânia, Ivone
e Gal Costa
   Mas com Dona Ivone Lara há uma peculiaridade, pois como ela nasceu em berço musical, estudou canto na época de internato, conviveu com tio e primos sambistas e casou com o filho de presidente de Escola de Samba, não precisou ser "descoberta" e, sim, foi se lapidando com as diversas influências que assimilou na juventude.
Délcio Carvalho e Ivone Lara
   Dona Ivone Lara teve uma trajetória brilhante e foi uma das maiores compositoras do samba brasileiro. Os caminhos percorridos por ela, que nasceu em berço artístico e com diversas influências musicais, foram aprimorando seu estilo, mesmo com a pausa para se dedicar à família e à vida profissional.
   Com inúmeros sucessos e diversos parceiros musicais ao longo da vida, com destaque para Délcio Carvalho, aquele com quem mais fez músicas, e que foram interpretadas por vários artistas - e continuarão sendo. Entre as principais composições estão: Acreditar, Candeeiro de vovó, Enredo do meu samba, Minha verdade, Nasci pra cantar e sonhar, Os Cinco Bailes da História do Rio, Sonho meu, Sorriso negro, Tié, entre muitas outras. 
Gisa Nogueira, Ivone
e Leci Brandão
   Dona Ivone cantou e encantou gerações de apreciadores do bom samba, pois parafraseando Zélia Duncan: "Dona Ivone Lara é um sonho meu, um sonho seu, nosso melhor sonho, pois ela é real". 
   Já com aparições públicas rareadas devido ao avançar da idade, Dona Ivone descansou, aos 16 dias de abril de 2018, aos 97 anos recém completados, deixando um vasto legado para as futuras gerações.


  Escrito por Aristides Leo Pardo em: Leituras da História (edição 114) - Editora Escala;